desconstrução

Cidadania, humanidade e extensão

Este texto é de autoria da uveana Nadija Lucas, com base nas reflexões de todo o grupo durante reunião do dia trinta de maio de 2015.

O que define o cidadão? O que define o ser humano? E até onde esses dois conceitos pretendem-se universais? Se o cidadão é aquele que deve ter todos os seus direitos reconhecidos, e o humano é nosso marcador comum de espécie, quem pode-se dizer detentor das duas características, cidadão e humano? Quantas vezes na História da ‘humanidade’ vimos grupos serem subjugados, caracterizados e considerados sub-humanos ou não-humanos, para assim, terem seus direitos e sua cidadania negados? Quantas vezes ainda vemos? É possível separar a cidadania da humanidade? E o que nos une como esta espécie humana que anda de mãos dadas (?) sabe-se lá quando sabe-se lá para onde?

Poderíamos dizer que, no nosso contexto capitalista, o consumo está sempre se propagando como a forma mais universal de ser humano. A maior divergência que temos para com as outras espécies animais, tidas como não-racionais, está em nossas rotinas permeadas de compra, venda e propaganda, desde itens básicos de sobrevivência (como água, por exemplo) a itens mais supérfluos: (Quase?) Tudo é (ou só pode ser) comprável. Dentro desse dia-a-dia de consumo que levamos (por sobrevivência ou seja lá por que), uma série de indivíduos já vai sendo subalternizada, já vai sendo encaixada no sub-humano, os indivíduos sem poder de compra. Até onde estes indivíduos podem ser ditos cidadãos, com direitos plenos e garantidos pelo Estado-nação do qual ‘fazem parte’?

A classe não é a única forma de exclusão, até porque ela não é a única marca que nega e/ou invisibiliza direitos e subjetividades. O próprio conceito de cidadão foi demarcado a partir de certas biopolíticas: Cidadãos na antiguidade clássica greco-romana eram os homens, de vinte e um anos, não-escravos e não-imigrantes. Quando um Estado democrata, que pretende discutir os direitos e deveres de tudo o que concerne a uma sociedade, que pretende ser representação e gestão do povo em suas totalidades e pretende até demarcar estas totalidades, quando este Estado delimita os sujeitos que podem ou não podem participar de suas deliberações e debates, este Estado exclui. Não só exclui como também cria elites, e a partir das biopolíticas mais presentes no nosso mundo ocidental, podemos perceber diversas elites e guetos de classe, gênero, raça, sexualidade, etc.

Enquanto os grupos que não fazem parte deste sujeito universal cidadão lutam e reivindicam mais direitos, suas reivindicações ainda estão submetidas a um Estado insuficiente em democracia. Os grupos que não fazem parte deste sujeito universal cidadão são muitas vezes limitados pelas definições que o próprio sujeito universal cidadão impõe. Temos um Estado constituído majoritariamente por elites: Homens cisgêneros heterossexuais brancos e não-pobres. E toda a luta levantada pelos grupos que não fazem parte destas elites, pelas mulheres, pelos transgêneros, pelos ALGBTIs, pelos negros e pelos pobres, toda a luta destes grupos em defesa de seus direitos acaba, na nossa república, sendo submetida às deliberações e debates de grupos que já tem esses direitos. Mais que isso, sendo submetida à lógica destes grupos que nunca tiveram os direitos que estão sendo reivincados negados. Nisto enquanto reivindicamos uma justiça social gigantesca enquanto grupos marginalizados, o Estado analisa nossas reivindicações e legitima apenas uma parcela destas. E enquanto reivindicamos conquistas, o Estado vai nos concedendo pequenos direitos, pequenos prêmios que em suas propagandas ele trata como dádivas, doido para finalizar e invisibilizar nossas lutas que por ele não foram contempladas.

Nesse contexto de cidadanias e humanidades negadas, é necessário pensar um novo projeto de humanidade. Para além das barganhas que precisamos fazer com o sistema no qual estamos inseridos pela nossa sobrevivência, precisamos aos poucos repensar o projeto de humanidade. Não precisamos só de uma inclusão num mundo elitizado, precisamos desconstruir privilégios e opressões. Precisamos lutar pelos direitos, e também pela revisão dos sistemas de luta e concessão desses direitos. E dentro dessas lutas, faz-se necessário que não só nós busquemos um reconhecimento pleno por parte do Estado, mas que o Estado busque nos reconhecer. Precisamos de um Estado que contemple todos os grupos humanos, ou seja, um Estado representativo de verdade. E onde entra a UVE e a extensão no geral no meio desse rolê todo complexo?

O empoderamento, a autonomia e a alteridade dentro dos nossos ideais e pensados no decorrer de nossas atividades não são necessários para a construção de projetos de humanidade em que todos se respeitem? Mas até que ponto este espaço de alteridade e autonomia já não é construído dentro de situações de poder, sendo nós orientadoras e orientadores universitárias e as participantes das atividades crianças em idade escolar? E quem somos nós para ‘empoderar’ o outro? Vixe…

E voltamos ao Paulo Freire, aquele senhor teórico que tanto nos inspirou para este projeto, ao pensar: Porque, afinal, entramos para a UVE? Não seria naquele estranho resquício de moral cristã, naquela coisa de querer “salvar” os outros, aquela coisa que já pressupõe hierarquizações de sujeitos e subjetividades – o redentor e o redimido? Como nós, enquanto sujeitos privilegiados, alguns homens, outros cisgêneros, outros brancos, outros heterossexuais, outros não-pobres, como nós iremos trabalhar na desconstrução de hierarquias e relações de poder, sendo por vezes parte desse poder? É aqui que precisamos reconhecer nossos privilégios e desconstruí-los. É aqui, no choque entre nossas subjetividades e as das crianças, e também no choque entre as subjetividades de cada orientadora/orientador, que temos a chance de reaver nossas relações humanas e o destino que queremos dar a elas. É aqui que podemos construir juntos. Nos empoderar – não ‘empoderar o outro’, mas nos empoderar como UVE, orientadoras/es e crianças – contra todas as estruturas que formam e constituem o poder como estabelecido, tendo consciência de que este poder existe de diversas formas – na escola que hierarquiza, na urbanização que exclui – e que é preciso que este poder seja distribuído para todos, e não que este poder esteja submetendo a todos. A UVE é o espaço onde uma coletividade de pessoas, todas diferentes entre si, sejam elas crianças ou orientadoras/es, tentam construir um grupo que reconhece estas diferenças, as respeita e as dá espaço para se manifestarem sem anularem uma à outra. Num contexto de cidadanias precárias e humanidades negadas, é assim que a UVE como extensão vem tentando expressar seu papel.